A
Catchy é um projeto criado por jovens mulheres para mulheres e para todos
aqueles que apreciem e admirem o universo feminino, particularmente no seu mais
bonito cliché: a moda. Mas não é só uma revista de moda; é também uma forma de
dar voz a quem sente que tem algo a dizer. Hoje, sinto que devo usar a nossa
voz para dizer algo que não é fútil nem bonito, mas que é sobre mulheres e que
deve ser falado, escrito e apregoado quantas vezes forem necessárias. Por isso,
este não é um artigo bonito, é um artigo real. E é uma exceção aos nossos
habituais conteúdos, sobre a qual vale a pena refletir.
Há
umas semanas atrás desapareceram duas jovens argentinas enquanto viajavam, que
recentemente foram encontradas mortas na região do Equador. Morreram porque
resistiram a uma tentativa de violação, e foram depois mutiladas e abandonadas
dentro de sacos de plástico no meio do nada, como se de nada se tratassem. Já
foi escrita - e muito bem, uma carta tendo em vista a perspetiva das vítimas,
sobre a forma como morreram e, sobretudo, sobre a forma como o resto do mundo -
e em particular a comunicação social, que é a voz de todos os cidadãos, encarou
as suas mortes. Não aspiro a escrever melhor ou a traduzir melhor este
sentimento porque não é possível nem necessário, quero só falar de algo que
para mim é fundamental: a educação que a sociedade nos dá e a forma como a
recebemos.
Aqui
na Catchy temos uma secção dedicada a Viagens, que ainda está em branco mas que
queremos preencher em breve. Faz parte da nossa aspiração pessoal viajar e
conhecer um pouco do mundo, à nossa maneira, as duas. Temos interesses muito
comuns e para nós faz sentido viajarmos as duas ou com outras amigas, ao invés
de chamarmos amigos homens para vir connosco porque nenhum deles tem interesse
em visitar os mesmos sítios que nós. Mas duas mulheres viajarem sozinhas, ainda
que maiores de idade, parece ser um problema para a sociedade. Parece ser uma
oferta, um abrir de uma porta com um letreiro a dizer “eu mereço ser violada,
desrespeitada e assediada” porque estou a viajar “sozinha”. Pior, porque estou
a viajar sozinha e me visto como eu quero, como me identifico. Porque na hora
de escolher a minha roupa de manhã, penso em mim e não nos outros, penso no meu
bem estar e não me passa pela cabeça se a minha saia devia ser mais comprida ou
a camisa mais abotoada porque posso despertar o apetite sexual de alguém que me
veja na rua.
Fala-se
cada vez mais de feminismo e tudo agora é entendido como tal. Mas aquilo que
falo hoje não devia ser categorizado como feminismo, devia ser inerente à
sociedade. E é curioso como as primeiras a falhar no conceito da liberdade da
mulher são as próprias mulheres. É frequente ouvir-se mulheres a dizerem que as
outras são violadas porque “estão a pedi-las”, porque a saia é curta e os
calções também. Porque o vestido levanta com o vento e porque os decotes são
excessivos. Se uma mulher vai à noite para casa, sozinha, está-se a habilitar.
Se uma mulher se arranja e usa roupas mais justas, está a pedi-las. Se ousa
viajar e conhecer o mundo sozinha, então é perfeitamente normal que alguém a
ataque. É quase como se fosse um direito dos homens encararem a mulher como um
objeto sexual, um direito consagrado na sociedade. Acredito que por força de
terem passado tanto tempo a ser apenas uma muleta do homem, as mulheres ainda
não se habituaram à ideia de que são um ser humano tão digno e merecedor de
direitos e deveres como o homem. E falo em mulheres porque é de mulheres que
mais vezes ouço os julgamentos mais injustos, não querendo com isto culpabilizar
apenas as mulheres.
A
forma como encaramos o mundo que nos rodeia advém em grande parte da educação
que recebemos quando tomamos consciência dos nossos atos e ações. É complicado
educarmo-nos à revelia dos padrões da sociedade porque eles guiam a nossa
rotina, mas se procurarmos educar os nossos homens e as nossas mulheres, os
nossos jovens, as nossas crianças, a encarar a mulher como um ser que tem tanto
de belo como de igual, talvez o mundo se torne um lugar melhor. A mudança
faz-se através dos gestos mais simples do quotidiano e é injusto pensar-se que
faz parte do nosso ADN desdenhar a forma de vestir umas das outras ou as opções
pessoais de cada uma. Reparem - elas não morreram porque foram viajar sozinhas
(até porque na realidade duas pessoas não estão sozinhas, estão uma com a
outra), morreram porque alguém tão infinitamente ignorante se achou no direito
de objetificar e desvalorizar a vida delas. Não nos culpem por sermos livres,
culpem quem se acha no direito de comandar a nossa liberdade. Culpem quem
esquece que somos de carne e osso e acha que somos apenas material. Culpem quem
continua a culpar quem não tem culpa, porque o verdadeiro perigo para todas as
mulheres começa quando se aceitam situações destas, quando se encara a violação
e a morte como algo normal, quando são a verdadeira anormalidade. E quando
acharem que alguém “está a pedi-las”, parem por cinco minutos e lembrem-se:
todos somos livres, e ninguém tem o direito de nos tirar isso.
(imagem via: WeHeartIt)
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